Filmargem

Haroldo de Campos

Em tempo de pós-reflexão _ ou seja, num segundo pensamento beneficiado pelo recuo retrospectivo no tempo — parece-me, hoje, que o chamado "cinema marginal", "udigrúdi" ou, como seria mais exato designá-lo, o cinema "à margem da margem" (para servir-me de uma bela fórmula cunhada por Augusto de Campos) — não é um "anti-cinemanovo", uma fílmica adversa ao movimento cinenovista que renovou, profundamente, a sétima arte no Brasil. Não. Num processo hegeliano de AUFHEBUNG — SOBRE-SUS-P(RE)ENSÃO — o cinema que se lhe antepôs, ou melhor, que o pervadiu pelas "margens", não visou, ao fim e ao cabo, a "suprimi-lo" polemicamente; antes, suspendeu-o, "aboliu-o" (enquanto o mantinha como virtualidade), "sobre-prendendo-o". Assim, numa nova instância problematizadora pôde deflagrar uma estética outra, para, a seguir, apreendê-lo de novo, conservando-o no horizonte, num movimento dialético de negação-preservação. O "udigrúdi" é parente "cardial" (não necessariamente "cordial") do cinema novo. Procede das entranhas deste, de seu epigastro, de seu ventre desventrado (e assim re-ativado em sua vis parturiente do novo), justamente quando o cinenovismo já começara a dar sinais de exaustão criativa, pela repetição de estilemas e estereótipos.

O cinema "da margem", como um surto cancerígeno (benigno do ângulo da invenção), "desconstruiu" o cinenovismo por seu "dentro", reconstruindo-o em modo usurpador, abusivo, mas desnudador do núcleo mais íntimo desse nosso novo cinema, do seu centro pânico, por assim dizer, reprimido e seqüestrado pelo que havia ainda de narratividade residual de tipo "realista-socialista", de otimismo programático (mas utopicamente idealizado, deceptivo) na "estética da fome" cinenovista, tseleologicamente voltada para a apoteose rebelionária do sertão convertido em mar, da redenção edênica, positivo-"salvacionista" (soterológica), infelizmente ao arrepio das lições da práxis. Dessa maneira, o udigrúdi exsurgiu de uma crise da certeza, da ruína da verdade dogmático-ideológica que se pretendia encarnada nas leis "científico-dialéticas" de uma história messianicamente pré-determidada, fadada ao "happy-end" emancipador, impelida por vocação a um desfecho feliz, inscrito no céu absoluto da ideologia travestida de teologia. O cinema "da margem" investe-se no momento de "negatividade" do processo cinenovista (esse momento que ressalta nítido em um Glauber também "marginado", o de Câncer), fazendo-lhe, em lance sucessivo, no que este inclui de "positividade", o resgate, seja no plano crítico, seja no da forma fílmica, como no Glauber das primícias, do filme-poema-concreto Pátio, herdeiro do Limite de Mário Peixoto, o marco fundador, que seria, já em plena marginália udigrúdi, parafraseado e recomido em contraponto corrosivo — auto-e-hetero-irônico — pelo desolado A agonia, 1976, de Bressane. Destravando da clausura tautológica, na qual se ensimesmara, a linguagem cinenovista, os "marginais" puseram de manifesto o furor do negativo em latência, algo já visível no Glauber de Terra em transe (1967) e, explicitamente agora, em A idade da terra e na filmografia glauberiana subseqüente: em O leão das sete cabeças ou nesse admirabilíssimo Di, feérie desabusada, onde a morte, dessacralizada, extraída com violência do mórbido cenário de um velório burguês, é catapultada caranavalescamente em plenitude de vida, como se Di Cavalcanti fora o Quincas-Berro-d'Água do melhor momento da ficção jorge-amadiana, e suas exéquias, subitamente, se metamorfoseassem em perpétuo móbile epifâmico de vivência e errância.

O "Angelus Novus" dos cineastas derrisores "da margem" é O anjo nasceu (1969) de Bressane, ensaiando seu vôo benjaminiano pelo "avesso do avesso", à bandida "luz vermelha" de Rogério Sganzerla. A "estética da fome" glauberiana converteu-se em "desestética do disforme" pela câmera dos udigrudistas: — além de Bressane e Sganzerla, os pioneiros da Belair, Andrea Tonacci, Carlos Reichenbach, Ivan Cardoso (o criador do "ivampirado" terrir) e outros, sem esquecer dois quase-antecipadores: o sempre deslembrado Walter Hugo Khouri, do pornô-urbano-cínico-metafísico, e o sempre lembrado Zé do Caixão (José Mojica Marins), com seu cinecrofilismo "brega". Fez, portanto, amadurar um novo (e apocalíptico) profeta: as(céptico), desértico, resseco, cuja arma não é o fuzil graciliânico do cortante e belo filmenovo de Ruy Guerra (Os Fuzis, 1963), mas a pluma trans-semiótica do eremiTradutor magno do Ocidente, São Jerônimo, santo patrono do gesto tradutório antropofágico. Um gesto decisivo que, desde o Limite de Mário Peixoto ao Terra em transe de Glauber e aos inventores despiedosos — nus e crus — do Kitsch do Kitsch filMarginal (exponenciação crítico-zenital-barroquista do feísmo esteticamente belo), os brasileiros "experimentais" do cinema-inovação assumiram e desfraldaram, a modo de bandeira, para devorar desrespeitosamente o cinema universal e devolvê-lo, remastigado, ao ecúmeno fílmico, já agora "abrasileirado" (em termos de consciência profunda, não de regionalismo pitoresco, tropicolororido) sob a espécie irrasurável de nossa diferença civilizatória "verbívorovisual"; um traço marcante, herdado de nosso barroco mestiço-praguejador, com o mazombo Gregório de Mattos, o Boca-do-Inferno, à frente, satirista implacável e contundente repórter ad-hoc de nosso primeiro "jornal-falado", criticando costumes e mazelas em pleno regime censório do colonialismo ibérico seiscentista.